História de sonho RACHEL DE QUEIROZ Esta noite sonhei com Portugal Queria saber contar sonhos, porque foi um sonho bonito. O medo que a gente tem (embora na aparência se trate apenas de um sonho inocente e até lírico), o medo são os amigos interpretadores, capazes de tirar uma história de sete cabeças do sonho mais inofensivo. Pois como dizia, sonhei com Portugal . Não via mapa, nem letreiro nem explicação formal, mas que era Portugal, não tinha dúvida. A gente ia num barco por um rio tranquilo, muito largo e com pedras à margem. E aos poucos se avistava uma cidade ou aldeia com casas antigas, abarracadas, subindo um morro; e eram tantos os pomares que de repente o rio se afundava entre as árvores e se virava num riachinho à toa; depois já não tinha riachinho, nem barco, nem nada, a gente estava dentro de uma das casas do lugar, na sala grande com móveis pesados de talha, e umas cortinas vermelhas de veludo E na sala estavam duas velhas e um velho, sendo que uma delas se sentava numa cadeira de balanço e tinha um gato branco no colo. Os três falaram comigo, e eu sei que me sentia mal por haver pe netrado ali naquela sala particular e tão tranquila sem pedir licença, mas a velha de pé me tranquilizou - talvez dissesse que era costume receber turistas; a velha sentada não dizia nada, continuava se embalando e sorrindo. Depois os três iniciaram uma história, mas era muito aflitivo porque eu não conseguia entender quase nada do que eles diziam; só me dava a impressão de que era fala das fitas de cinema portugués, cujo diálogo a gente nunca sabe se compreende tão mal porque é mesmo difícil de entender a lingua deles ou se é porque o aparelho de som está ruim. Aliás, lembrando bem eles falavam mesmo com voz de cinema, tinha até uma música de fundo. E ai eu perguntava à senhora da cadeira de balanço quanto é que custava uma casa naquela aldeia - assim bonita e antiga como aquela E ela respondeu um preço que não me recordo, mas que achei muito barato; se bem que a velha falasse em escudos - mas decerto no sonho eu entendia de cambio de escudos porque só o que me espantou foi a barateza do preço. Fiz então umas contas de cabeça, calculei que vendendo isto e aquilo aqui no Brasil dava para comprar aquela casa. Sim, aquela. Com a intensidade maior da minha vida, embora eu não tivesse coragem de o dizer as velhas, assaltara-me a cobiça de ser dona da casa delas daquela e nenhuma outra - com aqueles móveis, e a pequena escada sumida na sombra da sala grande, e os três velhos e a cadeira de embalo como gato branco...). Nesse ponto o sonho entrou a escurecer e a confundir, esfumou-se em fade out e não sei se acordei logo, ou se cal num sono pesado e sem consciência de nada. Só sei que me levantei de manhã com o mesmo desejo no coração, e por mais queas horas se passem ainda tenho presente na lembrança as mãos claras da velhinha e vista que se enxergava da janela e o soalho da casa de tábuas areadas e bem largas. Conto este sonho à toa. Mesmo porque, diz que é tolice contar sonho. Mas diz também o povo que a gente não contando ele não acontece. E a verdade é que eu queria satisfazer este sonho, descobrir aquela casa, aquele rio, aquelas velhas E conversar outra vez com elas..... Também ninguém pense que estou inventando um apólogo, que no fim haverá uma moral ou uma explicação. É um sonho e nada mais, naturalmente anárquico e sem sentido. Já falei que o conto à toa • fazendo um papel que nunca fiz imagine contar sonho, tanta tolice sem sentido. Mas me deixou melancólica e cheia de saudades, incapaz de escrever coisas sensatas, como seria da minha obrigação
ATIVIDADES DO TEXTO 1. Retire do texto todas as palavras que você não conhece e pesquise seus significados
2- De que trata o texto (um trecho de crônica)? Qual é o tema do texto? 3. Como é o narrador do texto?
+ Lembrando: "O narrador pode se apresentar como narrador-personagem, ou seja, aquele que participa das ações, dos fatos; ou como narrador- observador, que não participa da história, somente a observa. O narrador-observador se caracteriza pelo uso dos verbos em terceira pessoa e o narrador-personagem pelo uso dos verbos em primeira pessoa. O tipo de narrador constitui o foco narrativo do texto."
4- O que significa, no primeiro parágrafo, a expressão "sete cabeças"?